apologia da burrice

Paramos de chamar as pessoas de burras. É proibido dizer de um estúpido que ele é estúpido. Na tentativa de sermos polidos, demos um passo a mais e nos tornamos, na verdade, um país de gênios. Mas, agora, já estamos chegando ao limite máximo da condescendência. Pois as pessoas não querem mais admitir erro – nenhuma errro. Assim, nunca estão erradas. Falam abobrinha e, no entanto, “é um ponto de vista”. Caso você aponte o erro para ensinar a pessoa e fazê-la crescer, ela não quer. Ela tem um “ponto de vista” que precisa ser respeitado! – eis aí o berro dos oprimidos do mundo. O aprendizado fica truncado e, assim, nossos jovens vão indo de “ponto de vista” em “ponto de vista” para o poço sagrado … dos pontos de vista.
A democracia é coisa boa. Ter direitos individuais garantidos é ótimo. Mas ter o direito de não ser corrigido não é ter direito algum, é apenas ganhar o tratamento “café com leite”. E isso é uma das coisas mais desrespeitosas no mundo.
Afirmar “pluralidade dos pontos de vista” é lutar contra o “absoluto”. Concordo, claro. Mas a discussão do absoluto é uma discussão filosófica, a discussão do erro e acerto é metodológica. A discussão do absoluto é uma discussão metafísica – tem a ver com o “Deus morreu”, de Nietzsche. O que Nietzsche aponta nessa expressão diz respeito à fase da história da filosofia em que nós, bípedes-sem-penas,  começamos a desconfiar que não precisamos mais falar “de coisa em si” e “coisa para nós”, pois, uma vez que tudo com o que lidamos na ciência é só o “para nós”, o fenomênico, então, que acreditemos só nele. Eis aí o positivismo. Jogamos fora o absoluto. Mas, jogando fora uma parte da polaridade, perdemos também o outro polo, ou seja, diluímos as dicotomias. Ficamos em um mundo em que, do ponto de vista metafísico, não há verdade e mentira. Ora, então, não há nem mais a própria metafísica, mas também o próprio positivismo, inimigo da metafísica, perde sua razão de ser. Trata-se do fim da filosofia. Ou, na terminologia de Nietzsche, estamos diante da constatação de que “Deus está morto”.
E aí saímos nas ruas  berrando “Deus morreu, Deus morreu, agora tudo é permitido”!  Ora, será? É o fim então da vida social?
Erro e acerto são decididos a partir de parâmetros claros, fixados. Pode-se sempre avaliá-los, dado que o parâmetro é posto antecipadamente. Posto por nós, a cada tarefa humana! A questão filosófica e metafísica é diluída pela maioria das correntes filosóficas contemporâneas, a partir de Nietzsche, mas a discussão da avaliação de cada tarefa humana, dentro de parâmetros postos por nós segundo objetivos prévios, não é atingida e arranhada por isso. Nosso sistema axiológico, isto é, nossa tábua de valores é posta socialmente e, na sociedade, vamos articular valores a objetivos e, então, objetivos a notas de performance nas tarefas pedidas para se alcançar esse objetivos. Isso muda segundo nós mesmos a partir do que queremos fazer. Esse tipo de coisa é bem autônomo em relação à filosofia.
Caso eu queira que alguém faça um bolo, dou-lhe uma receita. Ele segue a receita e faz o bolo. O outro segue a receita e faz o bolo melhor. Um acertou. O outro acertou mais! O outro pode ter mais experiência e, então, não apenas colocou os ingredientes na panela e marcou o tempo, mas foi controlando o fogo alto e o fogo baixo, de modo que o bolo, por esse pequeno detalhe, ficou melhor. A performance de melhor resultado é apontada, então, como a correta. A primeira, de mais ou menos certa pode cair para algo que é errado. Pronto, eis aí como é fácil fixar o certo e o errado. Desse modo, daí para diante, há sim quem possa errar. E se a pessoa errar e errar e errar, ora, podemos não chamá-la de “uma anta” por respeito às antas ou por polidez com ela, a pessoa. Mas, a quatro paredes, não vamos deixar de dizer “nossa, como é uma anta, não consegue fazer um bolo com a receita na mão”.
Não entendendo isso, a diferença entre filosofia e discussão de avaliação de tarefas, os jovens e, agora, seu professores, não mais podem se envolver com o ensino, pois não podem ser avaliados e não podem avaliar, dado que não há mais quem erre ou acerte. O Brasil, agora, ficou acima do erro e do acerto. Já nem somos só gênios, somos deuses.

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