UMA ANÁLISE DA OBRA SÃO BERNARDO DE GRACILIANO RAMOS A PARTIR DA NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN

O filósofo da escola de Frankfurt Walter Benjamin tratou na sua obra O narrador, observações sobre a obra de Nicolai Leskov, da morte da narrativa oral que dava lugar ao romance burguês. Nesse ensaio Benjamin afirma que estamos perdendo a capacidade de narrar, de contar uma boa história, essa incapacidade, segundo o filósofo, se deve, principalmente, ao processo de reificação do homem pela alienação do trabalho no capitalismo onde tudo que é humano perde espaço; onde a experiência é indigna de narrar, o velho perde espaço em um sistema que supervaloriza o novo, o descartável e o efêmero. Benjamin deixa isso ainda mais evidente no seu artigo Experiência e pobreza que mostra homens emudecidos com a experiência da guerra e a surgimento de um mundo completamente novo, onde o aprendizado se dá de forma totalmente distinta daquela onde os velhos eram vistos como sábios e suas palavras e conselhos eram ouvidos,  a sua experiência era testemunho de força.
            O livro São Bernardo, clássico do modernismo brasileiro, traz uma narrativa impressionista e psicológica do seu personagem principal Paulo Honório que conta a sua vida por meio de um livro escrito em linguagem falada e natural. O artifício de Graciliano Ramos de narrar em primeira pessoa e colocar um personagem maduro que narra não de forma linear, mas com o tempo da memória afetiva vai à esteira de Benjamin no sentindo de construção de uma nova narrativa pela literatura que não se pode ater-se a um romance burguês que perca de vista as experiências humanas, mas que ao contrário, possam trazer toda a força das novas técnicas de reprodutibilidade artísticas. É Importante aqui salientar que o tempo da memória não é cronológico, um fato muito marcante, mesmo que tem acontecido há muito, nos vem à tona como se tivesse ocorrido agora, com a mesma força e intensidade. 
            Benjamin critica na narrativa burguesa a quantidade de informações e a forma detalhada e esmiuçada como são apresentados o que, muitas vezes, limita a interpretação do leitor ou do ouvinte, não havendo espaço para reflexões ou para interpretações mais ricas. O frankfurtiano fala da riqueza de alguns trechos bíblicos e de algumas estórias que preservam sua força germinativa durante séculos, enquanto que a informação jornalística acaba por tirar toda a imaginação e possíveis sentidos morais e ensinamentos produzidos a partir da contextualização dessas histórias. Para Benjamin a arte do narrador é também a arte de contar, sem a preocupação de ter que explicar tudo; a arte de reservar aos acontecimentos sua força secreta, de não encerrá-los numa única versão (1982,p.70)
Para Walter Benjamin (1983), o romance moderno inauguraria uma nova estilística e modelo estético, mas, por outro lado, ele denuncia o empobrecimento da vivência do ser humano e da experiência coletiva (Erfarung. No caso de São Bernardo, no entanto, o modernismo impressionista de Graciliano Ramos acerta em colocar uma narrativa livre das tradicionais narrativas acadêmicas dos romances tradicionais, logo no início do livro o personagem Paulo Honório deixa claro que vai falar com as suas limitações de homem comum, sem talento para letras, quando questionado que não é possível escrever como se fala ele pergunta, por que? A narrativa de Graciliano Ramos passa a ser então com um tom coloquial de um homem simples de Alagoas, que tenta entender a sua vida, seus erros e sortilégios.
Para Benjamin, no ensaio o narrador, nos tempos em que a narrativa oral era vista não só como entretenimento, mas como fontes de conhecimentos oriundos da experiência coletiva, as mudanças ocorriam de forma bastante lenta, já nos dias de hoje, as mudanças ocorrem de modo tão rápido que até mesmo os jovens sentem dificuldade em codificá-las e digeri-las. Segundo Gagnebin, Benjamin (1983) vislumbra então a morte de um tipo de narrativa, mas, ao mesmo tempo, reivindica uma arte, que à luz da realidade em que vivemos crie um novo vinculo baseado na experiência coletiva entre o mundo do texto e o leitor, ou seja, que o aproxime, seja do campo da história ou da literatura. Para Walter Benjamin, o conceito enfático de experiência no sentido de uma experiência coletiva (Erfarung) permite, assim, a escritura de uma anti-história, porque ao invés de encerrar o passado numa interpretação definitiva, reafirma a abertura de seu sentido, seu caráter inacabado.
É nesse aspecto que chama atenção um dos personagens de São Bernardo, seu Ribeiro, homem já idoso, vivia em uma comunidade aldeã, um pequeno vilarejo, onde a sua sabedoria era reconhecida por todos, lá a sua narrativa tinha o impacto de uma verdade construída pela experiência de toda uma vida. Longe das novidades da modernidade aquela vila preservava a experiência coletiva e a tradição oral prevalecia como forma de construção de identidade e formação ético-moral. Seu Ribeiro e sua estória descrita pelo escritor alagoano são exemplos da mudança da experiência coletiva e da narrativa oral como uma forma de comunicação e ensinamento. Vejamos a descrição feita por Graciliano Ramos desse personagem:
Seu Ribeiro setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz. Na povoação onde ele morava os homens descobriam-se ao avista-lo e as mulheres baixavam a cabeça e diziam – louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, seu major. Quando alguém recebia as cartas, ia perdir-lhe a tradução delas. Seu Ribeiro lia as cartas, conhecia os segredos, era considerado e major. Se dois vizinhos brigavam por terra, seu Ribeiro chama-os, estudava o caso, traçava as fronteiras e impedia que os contendores se grudassem. (    ) Não havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a mulher do seu Ribeiro rezava o terço e contava história de santo as crianças. É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a verdade. (      ) Nas noites de São João uma fogueira enorme iluminava a casa de seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira de Seu Ribeiro tinha muitas cerradas de lenha. As moças e os rapazes andavam ao redor dela, de braço dado.(pág. 45, 46)
Após ter vivido uma experiência coletiva e ser homem respeitado pela sua sabedoria com os anos e a vida lhe conferiam, seu Ribeiro teve que conviver com a solidão da vida burguesa. O seu conhecimento não tinha mais o mesmo encanto, as experiências coletivas deram lugar ao homem solitário que passou a viver na fazendo de Paulo Honório como um empregado remunerado cuja função era organizar as finanças do patrão e analisar documentos.  Graciliano Ramos narra essa passagem da comunidade lúdica para a cidade
Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravada e profissões desconhecidas. Os carros de boi deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E os impostos.
De acordo com Jeanne M. Gagnebin (1982: p.71-72), Peter Szondi notou que, Benjamin se afasta de Proust de quem era admirador porque este criava um tempo ilusório (fictício), ou um tempo intersubjetivo, enquanto Benjamin busca na experiência a afirmação de uma temporalidade que prioriza a memória daquilo que é mais relevante para o sujeito em detrimento de uma ordem cronológica. Neste sentido, a coincidência do passado com o presente não deve, para ele, liberar o individuo do julgo do tempo, mas operar uma espécie de condensação que permita ao presente reencontrar, reativar um aspecto perdido do passado, e retomar, por assim dizer, o fio de uma história inacabada, para tecer-lhe a continuação (Benjamin utiliza freqüentemente a metáfora da tecedura em relação à experiência histórica).
Na narrativa de Paulo Honório, personagem principal de São Bernardo, o tempo parece como psicológico e cronológico ao mesmo tempo. O objetivo do personagem é narrar a sua vida, contar a sua história, é possível que qualquer um que pretenda contar ou simplesmente relembrar a sua vida comece pela infância, e assim faz Paulo Honório. Essa narrativa, entretanto, sofre interrupções, é quebrada pelas lembranças do personagem. Isso se torna mais freqüente ao falar de Madalena, sua esposa, a partir desse ponto, a narrativa abandona quase que completamente o tempo cronológico e se transforma em memórias que precisam de algo as ligue, que lhes dê sentido, falta uma tecedura para reconstruir histórias.
Embora o livro São Bernardo possua uma narrativa que se aproxime de uma literatura que reinventa a narrativa, sob o um novo viés, mas tenta recuperar ou tratar da experiência coletiva, é possível questionar até que ponto o seu autor Graciliano Ramos construiu uma história humanista e rica com base em experiências pessoais e coletivas ou se trata-se de um belo romance burguês, construído justamente pela solidão do indivíduo que não vivenciou nenhuma daquelas mudanças, mas simpático como era ao marxismo e ao socialismo tratou com tanta beleza e detalhes aqueles cuja história oficial esquece e continua a escamotear.  






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