sobre a modernidade e a pós-modernidade

Ao se pensar em pós-modernidade é bastante oportuno iniciar a reflexão fazendo uma contraposição entre esta e a modernidade, pois foi a partir desta oposição, como parece estar claro, que surgiu o termo. “O significado fundamental, ou pelo menos inicial, do pós-modernismo, tem que ser que não há modernismo, não há modernidade. A modernidade acabou” (KUMAR, 1997, p. 78). Para Kumar, então, o início dessa contraposição conceitual tem dois caminhos básicos (pois é ambíguo): significa o que vem depois, algo novo que superou o passado; também tem o final da modernidade, seu término, o post de post-mortem, sem necessariamente algo já definido, ou seja, a percepção do fim do moderno. “Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos, superados ou ultrapassados, mas há pouca certeza quanto à coerência ou ao significado dos sistemas de pensamento que possam tê-los substituídos” (HARVEY, 1992, p. 47).
Esta também é a via inicial de David Harvey ao tratar do pós-modernismo. Caracterizar a modernidade para, em seguida, analisar as possíveis rupturas com essas caracterizações, seja cultural, social, artística... Essa caracterização, porém, é problemática, visto que a modernidade é bastante complexa e, nos famosos termos de Baudelaire, “é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável”. Em outras palavras, a modernidade é ambivalente.
Além disso, ainda segundo Harvey, podemos encontrar várias modernidades, dependendo do lugar, da época e dos grupos de intelectuais em posse do título “moderno”. De uma forma geral e inicial, no entanto, podemos colocar que “Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promove aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos” (HARVEY, 1992, p. 21).A(s) ambivalência(s) da modernidade acompanha(m) o caminho da ruptura, uma ruptura constante que dificulta ainda mais sua classificação: como um movimento de eterna ruptura pode ser descrito? “Tudo que é sólido se desmancha no ar” foi a resposta de Marx.
A ideia, na concepção mais contemporânea, tem sua origem no Iluminismo, no século XVIII. Daí provém a cientificidade, o progresso tecnológico e sua adoração, a valorização da razão ou, melhor colocando, Razão, celebração do domínio sobre a natureza e a ideia de emancipação humana da ignorância, miséria e religião.

Na medida em que ele saudava a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do progresso humano, os pensadores iluministas acolheram o turbilhão da mudança e viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário como condição necessária por meio do qual o projeto modernizador poderia ser realizado. Abundavam doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana (uma vez permitidos os benefícios da educação) e razão universal. (HARVEY, 1992, p. 23).

Por outro lado, o século XX parece ter desmentido as promessas descritas e, assim, voltamos à questão já mencionada das variedades de modernidade. As guerras, o nazismo e fascismo provocaram alterações no projeto da modernidade. Em suma, há a “suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana” (HARVEY, 1992, p. 23). Cabe aqui pensar –como causa, efeito ou ambos?- “a criação destrutiva” diante das catástrofes do século passado, isto é, uma condição que os modernistas tinham para renovar, que era destruindo o antigo, ainda que isso signifique chegar a extremos: revolução cultural chinesa; bombas atômicas no Japão; eugenia nazista etc.(Ainda que, faz-se oportuno colocar, os objetivos finais dos exemplos dados tenham características próprias, singulares).
Diante da complexidade da modernidade, no entanto, podemos encontrar algumas qualidades perenes. O “instantâneo” tem uma função na modernidade diante da criação destrutiva, que é o próprio ato de criar incessantemente, de destruir o velho e impor o novo e, assim, paradoxalmente, esse instantâneo é a busca do imutável na modernidade. “O artista moderno bem-sucedido era alguém capaz de desvelar o universal e o eterno (...) a partir do efêmero” (HARVEY, 1992, p. 29).
Ainda nesse sentido, o modernismo sofreu alterações em sua versão mais purista do iluminismo ao incorporar a luta de classes do socialismo, notadamente depois de 1848, com a publicação do Manifesto Comunista, por Engels e Marx. Era o reflexo das desesperanças na Revolução Francesa, no capitalismo, enfim, numa interpretação única, verdadeira e de caráter progressista da história. Também entra nesse aspecto mais dual do modernismo a obra de Sigmund Freud e o inconsciente ou, na pintura, o movimento cubista. “Em resumo, o modernismo assumiu um perspectivismo e um relativismo múltiplos como sua epistemologia, para revelar o que ainda considerava a verdadeira natureza de uma realidade subjacente unificada, mas complexa” (HARVEY, 1992, p. 37-38).
Por fim, a modernidade, então, era a insaciável procura pelo novo que, no século XX, pode ser entendida como os desenvolvimentos tecnológicos, as máquinas, os novos produtos que progressivamente adentravam o cotidiano e, igualmente, atingindo cada vez maiores contingentes populacionais. Nesse sentido, ora a modernidade enfatiza o apreço pela velocidade, ora questiona a(s) utopia(s), ora, principalmente antes da Primeira Guerra, valoriza a máquina e a ordem, consequências da industrialização e sistemas totalitários. A procura pelo eterno e imutável através da renovação, da linguagem, do efeito instantâneo parece ser a grande questão da modernidade; consequentemente, o fim da primeira acarreta o término da segunda.
O movimento de 1968 pode ser pensado como um dos marcos para o fim da modernidade, talvez o mais antigo e significativo. Mesmo sendo este um movimento de grandes e variadas, há quem diga indefinidas (como o próprio Bobbio), expectativas, o que veio na sequencia foi justamente uma crise de paradigma, das chamadas metanarrativas, de qualquer forma de encontrar uma verdade, ainda que complexa, enfim, a crise da utopia, qualquer que seja ela. Nesse sentido, podemos apontar a queda do comunismo do Leste Europeu como um último acontecimento-símbolo nesse processo e a publicação de The end of history and the last man, de Francis Fukuyama, seu marco teórico (ainda que este visse neste processo histórico uma volta da modernidade que fora interrompida). Estamos falando da pós-modernidade.
Contudo, há um problema prévio ao tratar dela, isto é, antes mesmo de iniciar alguma definição. Como observou Kumar, “Definições entram em choque com as próprias características de racionalidade e objetividade que os pós-modernistas se esforçam para negar”.(KUMAR, 1997, p. 142). Antes de prosseguir na problemática, tomemos o seguinte adágio de Jean Baudrillard:

Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas. (...) O simulador está ou não doente, se produz verdadeiros sintomas? Objetivamente não se pode trata-lo nem como doente nem como não-doente. A psicologia e a medicina detêm-se aí sobre uma verdade que não pode ser encontrada. (...) Quanto à psicanálise, ela devolve o sintoma do domínio orgânico ao domínio inconsciente: este é de novo suposto ser verdadeiro (...). Isto para salvar a todo custo o princípio de uma verdade e iludir a interrogação que a simulação coloca – ou seja, que a verdade, a referência, a causa objetiva deixaram de existir. (BAUDRILLARD, 1981, p. 09-10).

O que se pode aferir disso? Inicialmente vemos uma progressão destruidora de sentido, que vai além de uma referência à realidade. Ela é uma fase posterior à ideologia, representação e dissimulação quaisquer, além de qualquer par signo-significante, pois é em si algo superador do par mentira-verdade. Essa parece ser uma característica corrente da pós-modernidade: não é uma procura por sentido que resulta em fracasso, é uma procura bem sucedida por falta de sentido. Justamente por isso ocorrem tantos ataques à psicanálise, como vemos em, além do próprio Baudrillard, Deleuze e Guattari, pois o inconsciente freudiano é, ainda que fragmentário, nebuloso e dissimulador, um ponto obscuro de realidade, uma chama de real e, consequentemente, como vimos, um aspecto moderno.
Há, então, uma fetichização da falta de sentido, da atitude blasé e da intolerância com qualquer coisa que pareça a isso contrária. O conjunto dessas características – pós-modernidade- pode ser percebido como resultado das crises dos ideais modernistas, sejam eles estéticos ou econômicos; poderíamos destacar a ampliação de mercado em uma sociedade na qual todos podem comprar qualquer coisa, sem quaisquer limitações de gênero, classe, etnia ou sexualidade; também é possível perceber a pós-modernidade como uma reação ao movimento anterior, a modernidade, como ocorre comumente com os movimentos, por exemplo, literário e arquitetônico.
Esse real destituído também foi o Homem destituído, sem uma utopia, sem razão e até sem as multiplicidades modernas (as multiplicidades do homem passam a ser sobrepostas caoticamente, sem nada que as separe ou as explique).Parece central na avaliação de David Harvey sobre a pós-modernidade a dissolução das fronteiras entre diferentes instâncias. Isso fica bem claro na arquitetura; em vez de grandes projetos urbanos com zonas específicas, uma cidade pluralista, com preocupações pequenas e diversas, sem colocá-las em ordem, sem algo que lembre uma cidade ou uma máquina, tal qual ocorria na modernidade. Claro que o mesmo pensamento se estende a outras categorias, observadas pelo próprio Harvey, ao se lembrar de Foucaul e Lyotard:

A “atomização social em redes flexíveis de jogos de linguagem” sugere que cada um pode recorrer a um conjunto bem distinto de códigos, a depender da situação em que se encontrar (em casa, no trabalho, na igreja, na rua ou no bar, no enterro etc). [...] Os reinos do direito, da ciência e do governo burocrático, do controle militar e político, da política eleitoral e do poder corporativo circunscrevem o que pode ser dito e como pode ser dito de maneiras importantes. Mas os “limites que a instituição impõe a potenciais ‘movimentos’ de linguagem nunca são estabelecidos de uma vez por todas”, sendo “eles mesmos as balizas e resultados provisórios de estratégias de linguagem dentro e fora da instituição”. [...] Se “há muitos diferentes jogos de linguagem – uma heterogeneidade de elementos”, também temos de reconhecer que eles só podem “dar origem a instituições em pedaços – determinismos locais”.(HARVEY, 1992, p. 51).
O que ocorre é que essas sobreposições de diferentes instâncias param por elas mesmas, elas são em si a própria pós-modernidade e não um problema a ela (ou por ela) apresentado. Daí resulta uma relação estreita com a famosa “falta de sentido” da pós-modernidade, pois esta desenvolveu meios culturais e econômicos de convivência com essa problemática destruidora de sentido.
No entanto, é oportuno colocar que teóricos já encararam isso como um problema e, mais ainda, como um problema solúvel. É o caso de Slavoj Žižek ao perceber que as diferentes instâncias não são sobrepostas caoticamente, sem qualquer fio de razão; elas são deslocamentos, aspectos diferentes da verdade produzidos pelo próprio movimento perceptivo de diferentes instâncias ao se contraporem, pela paralaxe. David Harvey enumera quatro pontos para o materialismo histórico enfrentar a problemática contemporânea ou pós-moderna . Dentre elas está a busca por um “acordo com as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo” e não simplesmente a tentativa de verdade total.

É bem possível que da própria pós-modernidade surja seu inverso, com mais proximidade ainda de seu antecessor, a modernidade, inclusive nas terminologias, pois seria demasiado extravagante, para não dizer patético, algo como “pós-pós-modernidade”, “mega-hiper-real”, etc. É crer nisso ou na fábula de Fukuyama de fim da história.
Assim, os caminhos da política e, em especial da democracia, parecem ter se entrelaçado com a noção da estética acima da ética. Muitos teóricos teceram uma crítica da noção abstrata de razão universal iluminista, mas, ao fazer isso, transformaram o debate em torno da democracia contemporânea em um individualismo para não correr o risco de continuar com uma metanarrativa racional, de ter um sujeito ativo na história que, segundo essa corrente de pensamento, desemboca no fascismo e totalitarismo. Outros, como Habermas e Bobbio, de modos diferentes, perceberam que a democracia estava em um novo contexto, mas isso, no entanto, não torna necessário trilhar pela despolitização ou niilismo político.

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