Platão, idealismo e moral.

O filósofo ateniense Platão na sua obra Fédon ao falar das características da alma a dividiu em três partes, sendo a alma racional, situada na cabeça, superior as outras duas por conseguir alcançar o mundo ideal ou inteligível, enquanto as almas irascível (situada no coração) e concupiscente (situada no abdômen), responsável pelos desejos e instintos naturais, seriam inferiores e não podiam nos dominar. Com o seu mundo das ideias e a sua concepção sobre a alma o filosófico criou uma máxima de civilidade onde a razão deveria conter o corpo, o platonismo e suas vertentes criariam mais tarde um paradigma de homem centrado na razão e capaz de controlar seus desejos, de manter sob controle a alma concupiscível. A ideia do homem que consegue conter a sua natureza pela polidez e força da nobre alma chegou ao cristianismo romano com Paulo de Tarso e mais tarde com Santo Agostinho. O cristianismo católico medieval, inspirado no platonismo, consagrou o triunfo do medo do corpo e da punição dos desejos. O culto a um Deus Platônico e suprassensível e o medo do corpo e dos desejos humanos vistos como razão da corrupção do homem chegaram a tal ponto que no império Bizantino o cristianismo ortodoxo chegou a proibir o banho por ser considerado ato imoral, mulheres e homens eram frequentemente castigados por sucumbir à sua natureza.
A nova história cultural revela a tentativa medieval de alcançar o platonismo de Paulo e Agostinho, o estranhamento diante de si mesmo e o medo diante da própria vontade e daquilo é natural no homem e na mulher foi uma das grandes marcas do homem medieval. Mesmo a tentativa renascentista de sacralizar o corpo e o nu precedia da necessidade de tirar do corpo nu qualquer conotação erótica, era preciso mostrar o corpo como o lugar que abriga a alma, como criação pura de Deus, mas jamais de forma realista/naturalista, ao contrário o nu representava antes a ideia/forma do corpo que o corpo sensível/real.
Foi somente com as revoluções burguesas nos séculos XVIII e principalmente XIX que surgem na arte o realismo francês e o naturalismo capazes de romper com o idealismo platônico e expor o corpo, o desejo, o instinto, a natureza mais animal do homem. Esses movimentos, no entanto, não conseguiram ainda sublevar uma nova cultura cuja dicotomia Homem/animal/homem/racional deixe de existir precisa ainda ser construída. É nesse sentido que Nietzsche (a genealogia da moral) mostra como somos presos a ideias de moral ultrapassadas, continuamos a tentar fingir que sentimos o que não sentimos, vivendo a loucura da lucidez como diria Erasmo de Roterdã, (Elogio da Loucura) onde julgamos loucos os que são felizes e agem e vivem seus próprios preceitos, e achamos normais e civilizados os hipócritas que vivem de engar os outros e a si mesmos; esse é o homem que como disse Nietzsche está atado entre o animal e o além-do-homem. O rompimento com o idealismo platônico seria importante para a construção de uma nova moral menos moralista. Na filosofia o pragmatismo, o utilitarismo e o positivismo representam essa cisão com a metafísica e o idealismo, entretanto o impacto dessas filosofias na cultura ocidental ainda não é suficiente sequer para arranhar Platão, continuamos ainda a ter, mesmo que de forma morta e hipócrita, uma cultura cujo corpo ainda é punido por suas características naturais, e uma razão que se julga o centro do homem, do mundo, seja sensível ou inteligível.
Essa nova moral capaz de acabar com a supremacia da razão sobre o corpo, do ponto de vista ideológico, só pode surgir em uma sociedade onde não haja a cisão entre trabalho Manual e trabalho intelectual, nesse sentido a contribuição de Marx para a cultura é essencial. Ao analisar a sociedade capitalista a partir da leitura marxista fica evidente a alienação do trabalho, ou seja, a separação entre os trabalhadores e os meios de produção. O trabalhador não controla o processo produtivo, não opina sobre o quê e como produzir, exercendo no processo de produção uma função análoga a das máquinas, sendo somente uma peça de toda a engrenagem de produção, ao passo em que há uma elite pensante que não trabalha. Falar de uma sociedade onde o homem possa ser emancipado é necessariamente falar de um mundo socialista, onde não haja a cisão trabalho manual/intelectual e, portanto, a supremacia da alma racional sobre o corpo seja, enfim, superada.

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