O cinema e as representações de classe.
O cinema surgiu no século XIX, e logo se
tornou extremamente popular, inclusive entre a classe trabalhadora, Walter
Benjamin via no cinema uma arte capaz de alcançar os “leitores apressados”, sua
característica imagética, somada ao atributo inédito de dar movimento as
imagens, criando uma realidade em movimento, fizeram da sétima arte sucesso
instantâneo.
Como no capitalismo a burguesia controla os
meios de produção, logo os capitalistas se apropriaram de toda tecnologia,
engenhosidade e mão de obra para a produção cinematográfica. A divisão social
do trabalho capitalista, marcaria cada momento na produção de um filme,
captação de recurso a partir de um storyboard ou roteiro, cisão entre trabalho
manual e intelectual, interesses ideológicos do capital e dos estados
belicistas, tudo é parte do cinema produzido no mundo desde de 1896, quando
começam as produções com interesse comercial.
O cinema é, por excelência, a arte de massas
do século XX, Hollywood a maior expressão do capital como forma de
transformação da arte em mercadoria para consumo e descarte. O cinema
americano, bebendo de várias fontes, conseguiu criar uma estética
cinematográfica hegemônica, capaz de quase homogeneizar o gosto.
Tudo isso, não significa, entretanto, que
diretores, produtores e roteiristas criassem tudo de modo previamente pensado,
para a reprodução do capital. Definitivamente não é desse modo que a ideologia
opera. Os diretores e roteiristas, são homens e mulheres, que pertencem a
classes sociais, se localizam em um tempo histórico, cujo trabalho é organizado
dessa ou daquela maneira, sentem pressões políticas externas (como no
macarthismo), podem ficar desempregados, ter mais ou menos recursos, ter a
liberdade cerceada e etc. Por mais controle e influência política – vale
lembrar que o departamento de defesa dos EUA produz filmes de guerra, para
justificar sua presença assassina em outros países – que haja sobre a arte,
mesmo que estejamos falando da cultura de massa; todo controle do mundo, ainda
não é capaz de impedir a influência do mundo concreto e da luta de classes no
cinema, pois o trabalho é categoria fundante do ser social, e o complexo
trabalho mantém constante relação dialética com outros complexos, isso inclui
a arte e a cultura de massa.
Um Do futuro Hightech, a ilusão e o
apocalipse.
Nas décadas de setenta e oitenta, séries como
Star Wars (George Lucas) e Star Treck (Gene
Roddenberry) fizeram muito sucesso, além de outras tantas ficções científicas
que imaginavam um futuro não muito distante, como a famosa trilogia de Volta
Para o Futuro (produzida por Steven Spielberg). É no início da década de
oitenta, em 1982 que Blade Runner 2019 (Ridley Scott) é lançado, um dos
melhores e mais existencialistas filmes de ficção científica da história; a
produção era ambientada em 2019, se imaginava robôs com aparência humana,
sentimentos e memórias. Essas são produções relevantes como entretimento e
ícones da cultura pop, poderíamos citar várias derivações dessas formulas, não
foram poucos os filmes genéricos sobre expedições espaciais, ou que imaginavam
o futuro, olhar para o século XXI, imaginar o futuro era um exercício constante
do cinema das décadas de setenta e oitenta olhava para o futuro. Na estética
cinematográfica hollywoodiana daquele período, era curioso observar que o
futuro era apresentado como a era do domínio da tecnologia, carros voadores,
empresas capazes de fazer androides com aparência humana, memória e até
sentimentos.
Essa expectativa de futuro, o
deslumbramento com a emergência de um possível admirável mundo novo, foi
interrompida na década de noventa, curiosamente um período marcado pelo
consenso de Washington (1989) e a implantação em escala global do
neoliberalismo. É possível afirmar, que nessa década, uma das grandes marcas de
Hollywood foi a descrença ou desconfiança no real, podemos notar isso em filmes
como a trilogia Matrix (Lilly e Lana Wachowski), O sexto sentido (Night
Shyamalan), Clube da Luta (David Fincher), O show de Truman (Peter Weir) e De
olhos bem fechados (Stanley Kubrick), todos esses filmes, de enorme sucesso,
tratavam de uma maneira ou de outra, de como podemos estar enganados, o real
aparece como ilusão.
Na primeira década do século
XXI essa características permaneceria, filmes como, Vanila Sky (Cameron
Crowe), V de Vingança (James McTeigue) e Brilho eterno de uma mente sem
lembrança (Michel Gondry) continuavam a nos lembrar Platão e o livro VII da
república, com sua alegoria da caverna, poderíamos estar vendo sombras do real,
aquela realidade era falsa, ou quiçá, falseada propositadamente. A necessidade
de fugir à realidade veio a galope com as super produções de fantasia, Harry
Potter (baseado nos livros de J. K. Rowling) e O senhor dos anéis (baseados nos
livros de J. R. R Tolkien).
Nas décadas de setenta e
oitenta, corrida espacial, o avanço da computação, o superconsumo, nos levava à
crença de um futuro Hightech, mesmo que com os problemas que isso acarretaria, nos
anos noventa, o desmantelamento da URSS, queda do muro de Berlim, o avanço e o
imediato malogro do neoliberalismo como panacéia do mundo, tudo isso produziu
uma década com falta de perspectivas e de muita desconfiança no real. O cinema
nos lembrava do ato I, cena IV de Hamlet “há algo de podre no reino da
Dinamarca”. O movimento do cinema de massas, da crença no futuro automatizado,
nos anos setenta e oitenta, para a incerteza na década de noventa e início dos
anos dois mil, acompanhava a avalanche crescente da crise capitalista.
A década do apocalipse.
A crise de 2008, lançaria o
capitalismo em um precipício, e não demorou para termos uma representação
artística da falta perspectiva futura que a encruzilhada capitalista nos
colocava, em 2010 estreava na Fox, a série The Walking Dead, mostrando um
apocalipse zumbi, provocado por algum tipo de vírus que agia em no máximo 24
horas, a partir de então, com quase toda a humanidade destruída, todos os não zumbis se olhariam com medo uns
dos outros, diante de escassez de recursos; o único sentido da vida seria a
própria sobrevivência, todos os valores éticos e morais, dariam lugar ao senso
de sobrevivência.
A temática do mundo pós-apocalíptico
iria aparecer também, nas distopias adolescentes, sempre com grande sucesso de
bilheteria. Com crítica explícita ao capitalismo, as séries, Jogos Vorazes
(2012, adaptação da obra homônima de Suzanne Collins), Divergente (2014,
adaptação dos livros de Veronica Roth) e Maze Runner (2014, adaptação de James
Dashner) tem um comum a abordagem de um futuro distópico, onde a humanidade
está quase extinta, o estado é despótico e presente em todas as esferas da
vida, e a luta pela sobrevivência produz guerras e desafios constantes. Outra
franquia de grande sucesso de crítica e público com temática pós-apocalíptica
foi a nova trilogia o Planeta dos Macacos (2011/2017). Onde, mais uma
vez, aparece o tema ambiental e o risco de mutações genéticas, contaminações e
verdadeiros desastres provocadas pela ação do capital na natureza.
O filme mais representativo
dessa tendência pessimista e pós-apocalíptica, é Mad Max: estrada da fúria
(2015), o longa de George Miller, nos
coloca diante de um cenário pós-apocalíptico, no qual os humanos lutam pela
sobrevivência de maneira quase primitiva e sobre um terreno infértil e hostil,
perpetuando a já usada crítica sistemática à questão ecológica e à destruição
de recursos naturais essenciais à vida. Nesse mundo destruído, onde a
disputa pelo monopólio das riquezas naturais é a causa das guerras, o estado
eugenista, opera uma nefasta biopolítica, o corpo e a vida das mulheres
pertence aos donos do poder. O poder vem
da força militar, os “war boys”, estes sempre aparecem pintados de branco, numa
referência aos supremacistas, são autômatos, incapazes de pensar, de
desobedecer a uma ordem de seus superiores, cultuam os deuses e os automóveis.
Nova década e a luta de
classes
Em 2019, dois filmes
premiadíssimos e aclamados por expectadores de todo o mundo, podem estar
mudando o que veremos na próxima década: Coringa (Todd Phillips) e Parasita
(Bong Joon Ho), trouxeram à baila, a sempre atual luta de classes. Os dois
filmes, cada um a seu modo e dentro do seu estilo, deixaram a burguesia
exposta, toda a sua crueldade, desumanidade, desprezo pela vida humana
apareceram de modo explícito nesses longas.
Em Coringa, logo no primeiro
ato do filme, percebemos a desigualdade de classe, quando durante a
apresentação do personagem que dá título ao filme, assistimos um homem
esquálido, pois passava fome para garantir que mãe doente comece, desempregado e com uma série de problemas
mentais, teve seu tratamento interrompido pelos cortes do estado, enquanto o
bilionário Thomas Wayne aparecia na TV para defender austeridade fiscal e
chamar os trabalhadores de palhaços. Coringa, humanizado no roteiro de Todd
Phillips e brilhante interpretação de Joaquim Phoenix, não é um revolucionário,
é um homem perturbado por uma história de vida que está diretamente ligada as
duras condições sociais de Gotham City.
Parasita, filme sul-coreano,
vencedor do Oscar 2020, aborda a luta de classes em todas as camadas, do enredo
à fotografia, passando pela cinematografia e cada escolha de ângulo. Os de cima
na pirâmide social, moram literalmente na parte alta da cidade, os de baixo,
moram na parte baixa, em uma casa que fica abaixo da rua, ou até mesmo no porão
do rico. Em uma escolha certeira, o filme não apresenta a classe trabalhadora
como heroica, disposta a fazer a revolução, com Lênin ao fundo olhando para o
horizonte, ao contrário, os trabalhadores precisam fazer de tudo para garantir
a sua existência, a moral burguesa não enche barriga e nem paga o aluguel dos
trabalhadores. Os personagens da burguesia também não são caricaturas de
vilões, ao contrário, a família parece ser simpática, ingênua e acolhedora, mas
quem não seria gentil se fosse tão rico e vivesse numa casa tão confortável,
observa a esposa do senhor Kim. As primeiras impressões logo darão lugar aos
conflitos de classe, há duas cenas que se tornaram emblemáticas, o senhor Kim
no carro, ouvindo a mulher do homem rico falando ao telefone sobre a beleza da
chuva da noite de ontem, a mesma chuva que destruiu a sua casa e o deixou
completamente desabrigado, e a família embaixo da mesa, ouvindo os patrões
comentarem sobre o seu cheiro de pobres. O desfecho trágico de Parasita parece
cumprir a campanha feita pelos ativistas do filme coringa “kill the rich”. O
Coringa e o senhor Kim matam, não antes de terem suas vidas destruídas, essas
duas criaturas não tiveram chance alguma, viveram sob as piores condições,
passaram por situações vexatórias e degradantes, ambos mataram por desespero,
raiva, revolta contra uma injustiça pessoal. A violência como elemento
revolucionário e político, aparece mesmo em Bacurau, o filme mais acessível de
Kleber Mendonça Filho, também lançado ano passado. Em Bacurau, a população da
cidade homônima, precisou se unir para expulsar os representantes do
imperialismo americano, a violência de Bacurau, reivindica e faz várias
referências à história nordestina e da América Latina, Lunga é um Che Guevara
andrógino e cangaceiro, capaz de liderar
uma guerrilha no interior de Pernambuco, e expulsar os americanos que estavam
em conluio com as autoridades locais, em plano entreguista. A violência revolucionária
de Bacurau, aparece na defesa da cidade, da sua história e povo; a mesma
população que organizou uma guerrilha de defesa com Lunga e Pacote, no primeiro
ato do filme, reverenciava a morte de sua cidadã ilustre (interpretada por Lia
de Itamaracá, grande mestra das cirandas).
Coringa, Parasita e Bacurau
foram marcantes por trazer o debate de classe, que há muito não tinha
protagonismo tão evidente, nesses longas a luta de classes não comparece como
pano de fundo, nem há conceitos genéricos de povo ou representativa no sentido pós-moderno,
a luta de classes aqui é parte central do roteiro e da estética dos filmes, em
2020, a produção espanhola O Poço (Galder Gaztelu-Urruti) traz novamente o
tema, de modo mais metafórico, porém com o mesmo protagonismo, se essa será uma
tendência nessa década, somente o tempo dirá.
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